23 de outubro de 2015

Por que dizemos "Deus me disse"?



Quando alguém começa uma frase com "Deus me disse", tenho que admitir que um alarme silencioso dispara em algum lugar dentro de mim, a menos quando a frase é seguida por um verso da Escritura. Sei que muitos veem isso como o modo padrão que a vida cristã deve ser e que estamos realmente em comunhão com Deus quando somos capazes de senti-lo falando conosco através de uma voz interior. Mas eu não tenho tanta certeza. E não é porque eu acho que Deus é incapaz ou está desinteressado em falar ao seu povo hoje. Na verdade, eu resisto a essa linguagem mais precisamente porque Deus já está falando ao seu povo hoje. Ele nos fala através das Escrituras.

Quando lemos as Escrituras, não estamos simplesmente lendo um registro do que Deus disse no passado. Deus nos fala ativamente, aqui e agora através das palavras deste livro incrível. O escritor de Hebreus esclarece esse ponto quando cita passagens do Antigo Testamento e as apresenta não como algo que Deus disse ao seu povo em algum momento do passado, mas como algo que Deus está dizendo a seu povo frequentemente (Hebreus 1.6,7,8, 2.12, 3.7, 4.7). Ele escreve que "a palavra de Deus é viva e eficaz" (4.12). Ele está expondo nossas crenças rasas e motivações ocultas. Esta palavra é pessoal. Você e eu ouvimos a voz de Deus falando conosco, inequivocamente, autoritariamente, e pessoalmente quando lemos, ouvimos, estudamos e meditamos nas Escrituras.

Algo a mais, algo diferente

Mas muitos de nós queremos algo a mais, algo diferente. Nós lemos as Escrituras e os testemunhos de Deus falando com pessoas de maneiras surpreendentes ao longo da história da redenção. Jó ouviu Deus falar do turbilhão. Moisés ouviu o seu chamando na sarça ardente. Samuel ouviu chamando no escuro. Davi ouviu Deus falar através do profeta Natã. Isaías sentiu a brasa queimando e ouviu com segurança que a sua culpa foi levada para longe e expiada. Paulo (ainda Saulo) e os que viajam com ele na estrada para Damasco ouviram Jesus perguntando por que Paulo estava perseguindo ele. Profetas e mestres em Antioquia ouviram o Espírito Santo dizer-lhes para se separarem. João sentiu o Jesus glorificado tocá-lo e ouviu com segurança que não teria que temer.

Muitos de nós lemos esses relatos e assumimos que a Bíblia está apresentando a experiência normal de todos os que seguem a Deus. Mas é isso? Graeme Goldsworthy fala a esta questão em seu livro Evangelho e sabedoria. Ele escreve: "Todos os casos de orientação especial dada à indivíduos na Bíblia, tem a ver com o lugar dessa pessoa na realização dos propósitos salvíficos de Deus." E acrescenta: "Não há exemplos na Bíblia em que Deus dá orientação especial e específica para a crença primária (ou ordinária) Israelita ou cristã nos detalhes de sua existência pessoal. "

Há instâncias nas Escrituras em que as pessoas descrevem uma sensação de Deus falando com eles através de uma voz interior? Lemos relatos de Deus falando em voz audível, através de um sonho ou visão sobrenatural, uma mão humana escrevendo em uma parede, uma luz ofuscante, ou uma voz de trovão do céu. Isto é completamente diferente da maneira como a maioria das pessoas que dizem que Deus lhes disse algo descrevem ouvir a sua voz - como um pensamento que lhe veio à sua mente que eles "sabiam" que era Deus falando. Um proeminente mestre que treina as pessoas sobre como ouvir a voz de Deus, escreve, "a voz de Deus em seu coração, muitas vezes soa como um fluxo de pensamentos espontâneos." Mas onde na Bíblia nós somos instruídos a buscar ou esperar ouvir Deus nos falar desta forma?

Alguns dos que sugerem que uma relação de conversação com Deus não é apenas possível, mas inclusive normativa, apontam para João 10, aonde Jesus descreve a si mesmo como o bom pastor dizendo: "As minhas ovelhas ouvem a minha voz." No entanto, nesta passagem Jesus não está prescrevendo um método contínuo de comunicação divina. Ele está falando para os judeus da sua época usando uma metáfora que eles poderiam entender – o pastor e suas ovelhas. Seu ponto é que os eleitos entre os judeus vão reconhecê-lo como o pastor sobre o qual os profetas escreveram e irão responder ao seu chamado para se arrependerem e crerem, assim como serão os eleitos entre os gentios, para que eles se venham a se tornar um só rebanho e uma igreja, com Cristo como cabeça.

Anseio por orientação de Deus

Então, por que falamos sobre ouvir a Deus desta maneira? Nós crescemos ouvindo que devemos de ter um "relacionamento pessoal com Deus", e o que é mais pessoal do que ouvi-lo falar sobre os nossos problemas e necessidades individuais? Às vezes, se nós formos bem no fundo, iremos perceber que queremos mesmo é impressionar outras pessoas com a nossa intimidade com Deus e mais, nos assegurar de que eles saibam que nós o consultamos acerca de um determinado assunto. Outra razão que pode existir para dizermos: "Deus me disse", é que pode ser útil para nós. Se você me pedir para dar aula na escola dominical infantil, soa muito mais espiritual e torna muito mais difícil para você me questionar, se eu falar que Deus me disse que eu preciso assistir a classe de adultos da escola dominical com meu marido ao invés do que simplesmente dizer que eu não quero ou decidi não dar aula para as crianças.

Mas eu acho que há algo a mais acerca disso do que simplesmente o nosso desejo de parecer espiritual ou dificultar o questionamento de alguém sobre as nossas preferências ou decisões. Nós realmente ansiamos pela direção de Deus. Nós realmente ansiamos por uma palavra pessoal de Deus, uma experiência sobrenatural com Deus. Ainda assim, nós falhamos em compreender que à medida em que lemos, estudamos e ouvimos a Palavra de Deus ensinada e pregada, isso é uma palavra pessoal de Deus. Porque a Escritura é "viva e eficaz", Deus nos falando através dela é uma experiência sobrenatural e pessoal.

Deus tem falado e, de fato, continua nos falando através das Escrituras. Nós não precisamos de qualquer revelação mais especial. O que precisamos é a iluminação, e é exatamente isso o que Jesus prometeu que o Espírito Santo nos daria à medida em que a sua palavra permanecesse em nós. O Espírito Santo de Deus opera através da Palavra de Deus para aconselhar, confortar e convencer (João 16.7-15). Através das Escrituras ouvimos Deus ensinar, repreender, corrigir e nos aperfeiçoar em justiça (2 Tim. 3.16-17). A Palavra de Deus nos transforma pela renovação das nossas mentes para que possamos pensar mais como ele e menos como o mundo. Ao invés de precisarmos que Deus nos dite (audivelmente) o que fazer, devemos nos tornar cada vez mais capazes de "discernir qual é a vontade de Deus, que é boa, agradável e perfeita" (Romanos 12.2).

Eu aprecio a forma como John Piper descreveu sua experiência em ouvir Deus falar através das Escrituras em sua mensagem "Quão importante é a Bíblia?" pregada em Lausanne em 2010:

Deus não fala comigo de outra forma, ele fala comigo de forma muito pessoal. Eu abri minha Bíblia nesta manhã para me encontrar com meu amigo, meu Salvador, meu Criador, meu sustentador. Eu me encontro com ele e ele fala comigo... Eu não estou negando a providência, não estou negando as circunstâncias, não estou negando pessoas, eu só estou dizendo que a única comunhão autorizada que tenho com Deus, com toda a certeza vem através das palavras deste livro.

Que diferença isso realmente faz?

Será que isso realmente faz diferença quando esperamos Deus falar conosco através das Escrituras em vez de ouvirmos uma voz divina em nossas cabeças? Eu acho faz. Quando sabemos que Deus fala pessoal e poderosamente através da sua Palavra, não temos a sensação de que a nossa relação com Cristo é rasa ou que estamos vivendo um “sub-cristianismo” uma vez que não sentimos Deus nos dar palavras “extra bíblicas” para direção ou promessa.

Quando sabemos que Deus fala através da sua Palavra, não somos obrigados a aceitar – e de fato podemos apropriadamente ser razoavelmente céticos – contra a reivindicação de qualquer livro, mestre, pregador ou mesmo amigo, quando eles escrevem ou dizem: "Deus me disse" Não temos que esperar até que ouçamos Deus nos dar o “sinal verde” antes de dizermos "sim" ou "não" à um pedido ou tomar uma decisão. Nós podemos consultar as Escrituras e descansar na sabedoria e no discernimento que o Espírito Santo está desenvolvendo em nós e nos sentirmos livres para tomar uma decisão.


Assim como nós temos prazer na lei do Senhor dia e noite, podemos esperar que sua Palavra seja viva e eficaz em nossas áreas íntimas. A medida em que a Palavra nos transforma pela renovação de nossas mentes, descobrimos que nossos pensamentos e sentimentos, sonhos e desejos, estão sendo moldados mais pela sua Palavra do que por nossa carne (humanidade). Vamos descobrir que somos mais atraídos a obedecer aos seus mandamentos do que seguir a cultura. Vamos pedir à ele sabedoria e recebê-la por sua generosidade.

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Autor: Nancy Guthrie
Tradução: Leandro Lobato

Texto original disponível em: http://www.thegospelcoalition.org/article/why-do-we-say-god-told-me